Eu corria adentro da densa selva. Meus cabelos eram negros e longos, naturalmente selvagens. Vestia apenas uma tanga feita de folhas secas e trançadas. No meu braço esquerdo, entre o cotovelo e o ombro, tinha uma tatuagem feita com pigmento natural: era um olho. Eu tinha três olhos e cinco armas: uma flecha, um estilingue, uma machadinha de pedra, uma faca e as minhas mãos. Eu não conhecia o medo, e por isso, sentia-me livre nesta selva, porque eu era parte dela. Sobreviver era a lei do mais forte, não necessariamente forte no físico, mas no instinto!
Todos os dias eu percorria a selva à procura de alimento e de prazer. O prazer da água, o prazer do cheiro, o prazer do tato. Porém, independente de onde eu estivesse, eu retornava sempre para a Grande-Árvore.
A Grande-Árvore era a minha fonte de energia, a minha proteção, a minha mantenedora. Eu a abraçava e a cheirava, sentindo o melhor dela. Subia até seu topo e de lá avistava um outro mundo, um imenso lago verde e o céu. E lá de cima o céu se tornava escuro, eu via o espaço estrelar e todos os deuses, que estavam acima de tudo e de todos os seres daqui. Sempre adormecia no alto da Grande-Árvore, certa e segura de que nada aconteceria a mim, porque a Grande-Árvore tinha em mim sua filha e os deuses também. Quando há o zunido dos insetos, a agitação dos pássaros começam, é porque o Rei-Sol está chegando. Era sinal de acordar! Descia rapidamente e enquanto o céu-alaranjava anunciando um novo dia, eu começava a dançar! Dançava em torno da Grande-Árvore para o Rei-Sol! A minha dança louvava mais um dia de vida! E quando todos se silenciavam, e só ouvíamos o som das águas correndo, é porque ele já estava lá! Então eu sorria para todos e para mim, porque eu era feliz, eu tinha tudo o que precisava, inclusive a liberdade! Eu dava um grito, desejando ao Rei-Sol boas-vindas e ia caçar!
A selva nunca representara perigo a mim até então... Foi quando sentei-me numa pedra, às margens de uma cachoeira, que ouvi uma voz. Nunca havia ouvido uma voz, somente sons! Essa voz falou bem ao meu ouvido: “Eu sou o seu guia. Vim para avisá-la que hoje será um dia diferente. Você conhecerá a sua inimiga mortal, aquela que quer a sua selva, a sua Grande-Árvore, as suas armas! Você terá hoje um duelo em defesa de tudo aquilo que te pertence! Esteja preparada!”.
Mantive-me quieta, imóvel e meus olhos se fecharam. Através do meu olfato, pude sentir que não estava só. Ela já estava ali, atrás de mim. Podia ouvir agora seus movimentos de um lado para o outro, nervosos, como um animal felino e traiçoeiro, preparando-se para à caça.
Sob os meus olhos, o meu espírito estava atento. Ouvi a voz novamente daquele que se dizia meu guia “Ela que veio a ti, em busca do seu próprio egoísmo. Ela não te quer aqui, não quer dividir nada. Liberte o teu espírito e dance ao redor dela. Tu tens uma arma que ainda desconheces, mas que faz parte de ti, é a tua força. Faça a dança da guerra, porque o teu nome é Força!”.
Foi então que me vi sentada de olhos fechados ali naquela pedra, e pela primeira vez, avistei aquela predadora atrás de mim. Era um bicho em forma de mulher. Sua pele era branca, seus cabelos eram brancos e os seus olhos eram tão claros e transparentes, que não tinham fundo. Pessoas que não têm fundo nos olhos não são confiáveis! Para ela eu era a presa, a caça! O meu corpo já sentia as suas narinas quentes sobre ele, mas o meu espírito já dançava ao seu redor invocando todos os deuses que me deram a força.
Ela não me via, mas eu tinha a visão de tudo o que estava acontecendo. E no momento exato, meus olhos se abriram, e como um animal quadrúpede, me virei e pulei sobre ela, com toda a força que estava em mim, e no impacto de um único golpe, preciso e mortal, a destrui. Destrui a sua forma traiçoeira e arrogante contra mim. Foi um ato sem dúvidas ou fraquezas: eu a matei, porque com o inimigo não há escolhas: é matar ou morrer!
Meu guia disse: “Desapareça com o corpo, para que esse espírito ruim se vá com ele e que não vague ainda a procura de ti pela selva!”. Então amarrei um cipó entre seus pés e mãos, e a arrastei até um precipício. De lá, a empurrei para um lugar escuro e desconhecido, onde nunca mais encontraria o caminho de volta. O seu espírito foi-se também! Eu estava livre!
Era hora de retornar...retornar a Grande-Árvore. Corri em direção da minha fonte de energia! Não compreendia o porquê temos inimigos, à quem nunca fizemos nada, mas que mesmo assim, surgem do nada e querem tudo o que nos pertence!
Foi então que vi meu guia, pela primeira vez. Ele era feito de luz, muita luz! Ele sorria satisfeito! A satisfação dele era a mesma minha! Eu também sorria! Comecei a dançar: dançava para ele, para mim, para os deuses, para a Grande-Árvore!
A dança da vitória: vitória pela vida, que ainda pulsa em mim!